publicações-rumo

Publicações

Notícias


Saúde como vetor para o desenvolvimento econômico

28 de fevereiro de 2014

Confira a íntegra da entrevista com o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha. Os principais trechos estão na edição de Janeiro/Fevereiro da revista Rumos, que você pode acessar clicando aqui.
Rumos – A Fiocruz é referência para o sistema público de saúde, que possui grandes avanços desde a criação do SUS, há 25 anos, mas também muitos desafios. Entre eles, a descentralização e regionalização do sistema, seu financiamento e a aplicação de um modelo de governança participativa. Olhando para o cenário atual, o que precisa ser aperfeiçoado para superar esses e outros desafios?

Paulo Gadelha – É um desafio constante atualizar e recriar o projeto da Fiocruz. É um projeto que já bebe muito do seu processo de formatação da matriz original, da visão de como a saúde, a ciência e tecnologia são ingredientes centrais do modelo de desenvolvimento; e ao mesmo tempo, de como a instituição é suporte do ponto de vista de inteligência, formulação e também de operação dos grandes projetos nacionais. Para isso, a gente tem trabalhado muito com o sentido de prospecção. Um dos produtos que a gente realizou recentemente, que passa a ser uma atividade permanente da instituição, é trabalhar com uma prospecção de médio prazo, cerca de duas décadas, onde nós realizamos uma avaliação dos vários fatores condicionantes que vão referenciar a atuação da instituição. Por exemplo, a evolução demográfica, a evolução da carga de doenças no Brasil, o processo de conformação da base produtiva brasileira no campo da saúde, do chamado ‘Complexo Econômico da Saúde’, as questões ligadas a modificações tecnológicas. Em todos esses fatores, nós temos trabalhado para definir qual a melhor forma de atuação da Fiocruz, considerando a competência instalada e as lacunas que nós temos que preencher. Somos um suporte para esse processo de vínculo entre as políticas de desenvolvimento social e saúde e o desenvolvimento produtivo, a base produtiva nacional. 

A constituição do SUS [Sistema Único de Saúde], que teve participação ativa da sociedade brasileira, coloca a questão do direito à saúde como o direito da cidadania e a questão do dever do Estado de prover as condições para esses direitos serem exercidos plenamente. Há vários desafios, neste sentido. Alguns são desafios de natureza mais geral, como subfinanciamento: temos hoje um país que ainda aplica um percentual baixo do seu produto interno bruto para a área da saúde, em torno de 3,5%, enquanto vários outros países, inclusive de economias equivalentes, aplicam valores muito mais elevados. E o próprio gasto público brasileiro está caindo com relação ao gasto nas despesas privadas, no sentido do cômputo geral das despesas relacionadas à saúde. 

Temos problemas muito intensos também em pensar a modificação da base demográfica e da carga de doenças. Porque nós vamos ter uma população cada vez mais idosa com relação à população jovem. E isso traz desafios enormes no campo da seguridade social, no caso da previdência e, certamente, no caso da saúde. Passam a predominar as doenças crônicas não infecciosas, ou seja, doenças como o câncer, as doenças biodegenerativas, as de área cardiovascular, sobre o padrão anterior, que ainda está presente, mas que cada vez mais do ponto de vista do impacto, especialmente mortalidade, tem uma tendência fortemente declinante. Acompanhar essa mudança significa também para a Fiocruz se redefinir, no sentido de fazer as pontes entre seu campo de tradução mais forte, que são as doenças infecciosas, e esse novo campo ligado às crônicas não infecciosas. E há também outros elementos como a própria questão da violência, que no Brasil tem um peso muito grande no padrão de qualidade de vida e mortalidade.

E temos ainda alguns desafios específicos do SUS, que dizem respeito ao processo das relações federativas do Brasil, e em muitos casos os recortes territoriais não necessariamente acompanham os recortes federativos. Então, o processo de definição da regionalização, da criação das redes, a definição de contratos de responsabilidade, no sentido da capacidade de definir metas, processos de monitoramento e aferição dos resultados, são grandes desafio no campo da pactuação federativa e também do processo de gestão e coordenação das ações de saúde. Então estamos falando do próprio modelo de Estado, da forma como o SUS se organiza para adquirir uma efetividade. 

Outro tema que a gente sempre tem falado é que é fundamental que esse processo da configuração da reforma sanitária esteja interiorizado como um grande valor da sociedade e dos cidadãos, porque se não for compreendido esse ideário do direito à saúde, e a complexidade que é num país de 200 milhões de habitantes, com as características geográficas do Brasil, com o seu Estado de desenvolvimento, prover de fato a oportunidade desse direito ser exercido, dificilmente os movimentos que trabalham na busca de suporte para dar condições para que o SUS seja sustentável vão ter as condições políticas de sustentação. Então, é preciso ter esse grande grau de consciência muito forte da população, de entender o SUS como um valor. Isso também significa, num plano mais geral, um desafio muito grande de fazer esse entendimento de que a saúde deve estar no centro do modelo de desenvolvimento do país e possa ser percebido por todos os setores envolvidos com o desenho das políticas de desenvolvimento do país. 
Rumos – Como avançar nessa compreensão da saúde como central para o desenvolvimento do país? 

Paulo Gadelha – Muitas vezes há uma dificuldade de compreensão entre setores do campo da economia e da área social para entender que a saúde joga um papel central no processo de desenvolvimento por várias razões. Nós sabemos que cerca de 8% do PIB nacional gira em torno da saúde, considerando a área de insumos, de vacinas, medicamentos e serviços. Cerca de 10% da força de trabalho qualificada no Brasil está envolvida na área da saúde. Se você for pensar as fronteiras tecnológicas mais significativas, elas estão associadas com o campo da saúde, pensando aí a engenharia genética, a biotecnologia, a nanotecnologia. Então, em todos os sentidos, pensar uma base de inovação e produtiva nacional, ela tem na saúde uma grande âncora. E esse processo pode estar associado virtuosamente com as políticas sociais, ou pode estar em caminhos diferenciados; temos então esse outro grande desafio, que é fazer com que a política de desenvolvimento produtivo no Brasil responda às demandas que são evidenciadas do ponto de vista de demandas de carga de doenças, demandas de serviços, demandas de tecnologias que a saúde requer, porque se nós não tivermos isso, o SUS se torna insustentável.

Temos, hoje, uma questão extremamente séria do ponto de vista da questão de equilíbrio econômico brasileiro, que é a balança de pagamentos, e temos trabalhado no sentido de reduzir esse déficit no campo da saúde, mas ainda temos cerca de 11 bilhões de dólares como déficit na balança comercial dirigida, relacionada no campo da saúde. Esse desafio tem que ser pensado como desafio macro do país.
Além disso, a saúde é, sem dúvida, um dos esteios muito fortes para se pensar a coesão e a equidade do país em termos das suas desigualdades geográficas. 
Rumos – Isto nos faz pensar na atuação importante da Fiocruz junto ao programa “Brasil Sem Miséria” e também em outros projetos sociais. Como se dá essa participação?

Paulo Gadelha – Estou falando de duas situações: uma é especificamente de como a revisão e a atualização do projeto nacional da Fiocruz tem sido um indutor de arranjos produtivos, de processos de desenvolvimento em vários locais do país. A saúde tem esse poder alavancador para estimular o desenvolvimento, do ponto de vista da melhoria da qualidade de vida, com tantas distorções que acontecem, seja em microrregiões de estados mais desenvolvidos, seja em regiões nacionais aonde os indicadores de saúde são extremamente favoráveis. Em nossas experiências, temos visto como uma forma estruturada, induzida, organizada da presença da saúde, da ciência e tecnologia a nível regional já produz um efeito de geração de emprego, renda, base tecnológica e começa a corrigir as iniquidades de concentração forte que o Brasil tem como padrão, principalmente na região sudeste, onde concentra a maior parte de tecnologia. Há inúmeros exemplos, como o polo tecnológico voltado exclusivamente para o campo da saúde no Ceará e também outras unidades no Piauí, em Rondônia, em Mato Grosso do Sul, que possuem forte capacidade de alavancagem de uma série de iniciativas no campo da base produtiva tecnológica daquelas regiões.

A outra forma é o trabalho direcionado para as políticas sociais, como é o caso do “Brasil Sem Miséria”. O programa possui um direcionamento claro de uma prospecção ativa para identificar setores da população que muitas vezes estão numa relação opaca com relação às estatísticas, à identificação do setor público; então, há um processo ativo de busca e identificação dessa população que ainda está abaixo da linha de pobreza, e atuamos com iniciativas que vão desde a produção de conhecimento até a definição de tecnologias no campo social e da saúde para enfrentar todo o conjunto de situação de vida que essas populações vivem. Há um projeto importante, que temos em parceria com a Funasa, que diz respeito à questão do acesso e da qualidade da água no semiárido. 

Nós temos, ainda, um programa com a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], que é direcionado para concessão de bolsas ao nível da pós-graduação para projetos que tenham como objeto as situações relacionadas ao ‘Brasil Sem Miséria’ e que tenham como característica buscar resultados de conhecimento e de proposta de intervenção para modificação dessa realidade. Ou seja, é o projeto de fazer com que haja uma relação muito direcionada entre produção de conhecimento e resolução de problemas sociais.  

Então a gente atua nas duas dimensões: nas dimensões do trabalho diretamente envolvido com populações carentes, com modelos de atenção à saúde na área de atenção básica e na discussão dos determinantes sociais sobre a saúde, mas também atuamos nesse campo específico de indução ao desenvolvimento do estado produtivo.

Rumos – Quais os resultados alcançados até o momento com as Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs), que visam a internalização no território nacional de todas as etapas de produção de itens estratégicos para o sistema de saúde? Poderia citar algumas iniciativas, entre as 35 PDPs que a instituição é responsável, e apontar quais os ganhos obtidos?

Paulo Gadelha – Esse é um número que altera a cada dia. Hoje, nós já temos 35 PDPs, o que equivale a um terço de todas em vigor no país. As PDPs são instrumentos muito importantes de uma política bem mais ampla, que está inserida no “Brasil Maior”, com objetivo de conferir um arranjo organizacional e base normativa que possam induzir os processos de inovação e base produtiva brasileira associados às demandas no campo social. Elas trabalham com, primeiro, a identificação de quais são os produtos considerados relevantes, prioritários do ponto de vista da necessidade do SUS, e há uma série de critérios a definir esses produtos. O modelo obviamente é a demanda do perfil de saúde no Brasil. O outro é o grau de dependência e de valor que esses produtos têm com relação à não produção nacional, à não interiorização de tecnologia e, portanto, à dependência, à importação e ao valor agregado que eles têm dentro do orçamento no Ministério da Saúde. Um terceiro dado importante é qual é a capacidades que esses produtos – sejam eles medicamentos, vacinas, kits de diagnóstico, equipamentos – têm como indutores de plataformas tecnológicas e de processos de desenvolvimento de tecnologias no Brasil.

Na definição das parcerias, a condição primeira é que se tenha produção nacional, com incorporação ou desenvolvimento de tecnologia, para garantir que esse processo esteja dentro de uma inteligência de Estado, e necessariamente há que ter a presença de um laboratório público como um dos parceiros. Então, há uma questão central que é reforçar o protagonismo do Ministério da Saúde como ator dessa área de inovação e desenvolvimento tecnológico no país, porque tempos atrás nós não tínhamos, o Ministério era relativamente passivo com relação ao que se dava através das agências de fomento, de pesquisa e desenvolvimento tecnológico e não havia uma política orientada para primeiro definir que produtos e que tecnologias interessariam ao Ministério. 

Além disso, essa nova orientação permitiu a construção de mecanismos ao mesmo tempo de indução de parcerias e de competitividade entre as várias empresas, na medida em que, ao desenhar um determinado alvo nas PDPs, você pode utilizar mais de uma associação com relação ao desenvolvimento daquele produto. Isso gera também entre as empresas oportunidades tanto de indução, mas também de competitividade para que elas acelerem a sua competência de base tecnológica e produtiva no país. E esse processo tem gerado dados bastante positivos do ponto de vista econômico.
 
Rumos – O que se percebe é que, de certa forma, os projetos da Fiocruz estão todos muito interligados. Qual a importância disso para os resultados que a instituição deseja alcançar? 

Paulo Gadelha – Isso é fundamental para uma instituição como a Fiocruz. Temos uma matriz muito diversificada, com pesquisa, área de produção, de ensino, de controle de qualidade, de formação do nível técnico. Então, essa diversidade poderia ser elemento de dispersão e de desagregação, mas se torna um grande valor do ponto de vista de vantagem comparativa, justamente porque nós conseguimos fazer com que todas as áreas da fundação se integrem em projetos estratégicos comuns – seja pela nossa relação com o Ministério e por esses projetos que têm uma direcionalidade clara do ponto de vista de projeto nacional, seja pelo modelo de planejamento e gestão participativa que nós temos. Nós não podemos em nenhum momento pensar que, por exemplo, uma atuação do ‘Brasil Sem Miséria’ esteja desconectada de uma atuação na criação de uma base tecnológica numa região do Nordeste, onde você tem a maioria da população do programa; ou então pensar em como a promoção da saúde depende de pesquisa, tecnologia, ela gera também demandas depois num nível mais complexo de atenção à saúde. Desse modo, não há como pensar de forma desintegrada, procuramos trabalhar todos esses componentes dentro de um processo comum de planejamento e sinergia.
Rumos – Por último, o senhor pode comentar sobre essa parceria entre a Fiocruz e a ABDE. Como a Associação pode auxiliar a Fundação neste objetivo de entendimento da saúde como peça importante para o projeto de desenvolvimento do país?

Paulo Gadelha – Essa parceria, para nós, é fundamental. É fundamental, primeiro pela credibilidade, pela capacidade de articulação e de formulação da ABDE. Depois, porque o nosso grande desafio é encontrar vínculos cada vez mais orgânicos para pensar essas dimensões do desenvolvimento e da saúde. Eu acho que esse acordo de cooperação técnica permite uma sistematização e um alinhamento que pode ter desdobramento para vários setores, para a definição de políticas da própria Fiocruz, para áreas de referências com relação às agências de financiamento, para integrar questões mais amplas do debate que hoje é feito no âmbito do projeto do Ministério da Saúde junto com os outros órgãos governamentais ligados à temática do desenvolvimento. Então, eu tenho uma expectativa muito positiva e estamos muito empenhados que esse acordo seja um grande sucesso.

Mais notícias